Comemorar nietzschianamente a morte de Kadafi
Quando Jesus tentou ensinar o perdão para os homens de seu tempo, ele colocou para eles uma barreira intransponível. Ele pediu que seus contemporâneos não julgassem para não serem julgados. Ele acusou todos de hipócritas. Com isso, ele conseguiu que muitos aprendessem o perdão, mas, ao mesmo tempo, ele criou um discurso vazio. O discurso que denuncia a hipocrisia é um discurso vazio.Quando Nietzsche lançou a pergunta “quanto de verdade suportaria um homem?”, ele se pôs do lado contrário dos desprezadores da vida, principalmente Jesus. A vida individual só é uma vida individual porque social, comunitária. E se o homem é alguém que vive em rebanho, que vive comunitariamente, ele não tem outra escolha senão adotar como inerente à sua condição algum nível de hipocrisia. Na vida comunitária a própria verdade, Nietzsche disse, não seria outra coisa senão uma mentira socialmente aceita. Não podemos querer toda a verdade e, ao mesmo tempo admitir a existência da vida social. Ora, mas sem a vida social não existe a vida. Então, se a vida do homem deve ser afirmada, e não desprezada, algum nível de hipocrisia tem de ser cultivado.
Entender isso é entender não só a base da vida social, mas é, também, compreender o que Nietzsche queria que entendêssemos: que toda vez que alguém chama o outro de hipócrita, como se o outro pudesse não ser hipócrita, o que o xingador faz é nada mais nada menos que desprezar a vida. Afirmar a vida é viver a vida. É não criar condições para amaldiçoar a vida a ponto de se querer sair dela. Jesus queria sair da vida. Sua vida era um caminho para sair da vida. Por isso ele podia xingar todos de hipócritas, porque o parâmetro que ele tinha como o melhor para a existência era a situação pós-vida, a situação de morte, ou que ele chamou, por eufemismo, de vida eterna.
Quando queremos desprezar a vida chamamos os outros de hipócritas. Assim, alguns de nós, diante do que ocorreu com Kadafi e outros ditadores, acredita que o correto não é comemorar e, sim, vir a público dar uma de Jesus e denunciar o Ocidente pela “hipocrisia”. O Ocidente teria dado a mão para Kadafi e, depois, diante de uma nova conjuntura, por motivos que não são só os da liberdade e da democracia, ajudaram na morte do ditador. Quem diz isso, acusa os líderes ocidentais de hipocrisia. Então, agem como Jesus e não como Nietzsche. Não compreendem que nenhum líder ocidental poderia ser líder se viesse a público para dizer toda a verdade. Os líderes são porta vozes de sociedades, de toda a cultura, inclusive do necessário trato social que as sociedades cultivam para serem sociedades. Pedir a um lider que abstenha-se da hipocrisia é pedir não só que ele deixe de ser líder, mas que ele deixe de ser humano, obviamente um pedido imbecil. Uma sociedade sem um pingo de hipocrisia não teria nenhuma regra, porque não teria nenhum convívio social, aliás, não teria crenças comuns e, portanto, não seria uma sociedade.
Chamar as sociedades ou as pessoas de hipócritas é não dizer nada, ao menos quando se trata de fazer isso entre nós, pessoas como eu, que são antes afirmadores da vida que negadores dela. Os afirmadores da vida sabem que a vida e a hipcrisia são sinônimos. Um homem que agissse sem trato social, sem verniz, sem polidez, sem esconder o que pensa e sem ponderar o que pode dizer e o que não pode não seria civillizado, aliás, nem homem seria. Seria um anjo ou mesmo Jesus. Para uma mãe, seria um menino mal criado. Só os que não vivem nesse mundo ou que estão para sair dele podem xingar o mundo de “o mundo”.
Cada um de nós conta a verdade que é a mentira socialmente aceitável. Quando achamos que somos Jesus, aquele que sempre esteve a caminho da Cruz e, portanto, sempre crente de que iria abandonar o mundo para estar em outro reino, então podemos achar que há alguma denùncia ao falar “hipócritas”. Quem não é Jesus sabe que falar que os outros são hipócritas é o mesmo que falar que os outros humanos são humanos.
Quando entendemos isso, podemos dosar nossa hipocrisia e até conseguirmos melhorar nossas sociedades, mas quando teimamos em sermos Jesus, então ficamos diante da televisão para começar a sentir nojo de nossos líderes, de nossa sociedade, do Ocidente, de nossa democracia, de nossa política, de nossos ideais. Perdemos o orgulho. Perdemos o orgulho próprio. Degradamo-nos e, então, estamos prontos para cuspirmos em nós mesmos. Chegamos então à condição cristã sem sermos Cristo. Torma-nos humildes não por virtude, mas por impotência. Tormamo-nos obrigatoriamente enojados de tudo e de nós mesmos. Não queremos mais viver. Estamos paralisados diante da TV. Tudo que fizermos estará no conjunto da hipocrisia que denunciamos. Passamos a não mais saber que essa condição de viver sob um determinado ethos, que sempre implica em uma hipocrisia, é a condição básica para reclamarmos por uma ética. É nossa condição não como pessoas errradas, mas simplesmente como pessoas. Não conhecemos uma outra situação. Não estávamos na condição humana quando a evolução ainda não havia nos mostrado as possibilidades que adquirimos quando do bando nos tornamos comuntários.
Quando vemos na TV Kadafi morto, não temos que cobrar de Obama ou de nós um discurso que não seja este: o de que fizemos o certo. Porque fizemos o certo mesmo. Eliminamos Kadafi porque ele era pior que nós, não importa que façamos coisas, entre nós, que nos lembre bem dele e de nossa amizade com ele. O que importa é que, em determinado momento, pudemos colocá-lo sob avaliação e, então, dizer: “não somos santos, não somos mesmo, mas ele é pior que nós”. É assim que vivemos. É assim que podemos afirmar a vida. Quando fazemos outra coisa, quando começamos a denunciar o que é a nossa própria condição vital, estamos cansados da vida. Somos cristãozinhos sem Cristo. Pobres diabos.
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